regulamento aprovado em segredo
Cinco companhias de teatro descentralizadas – ACTA, do Algarve; A Escola da Noite, de Coimbra; o Cendrev, de Évora; a Companhia de Teatro de Braga; e o Teatro das Beiras, da Covilhã – contestaram hoje o novo regulamento de apoio à criação artística aprovado no Conselho de Ministros do passado dia 14 de Agosto.
Estas estruturas criticam, numa carta enviada ao Ministro da Cultura, o “secretismo” com que a legislação foi preparada, sem ouvir os agentes culturais a quem se destina, apesar dos pedidos formais para o efeito e, até, dos compromissos assumidos por responsáveis do Ministério. Pelo contrário, o Governo exigiu “confidencialidade” no parecer que, por força da lei, foi obrigado a pedir à Associação Nacional de Municípios.
As companhias contestam, ainda, a oportunidade e a justificação deste novo regulamento, que vem substituir uma legislação de 2006, aprovada já pelo actual Governo, e que nem chegou sequer a entrar em vigor. Nos últimos dez anos, esta é a quarta alteração significativa no sistema de financiamento público à criação artística, o que “tem como única e contraditória consequência a total desestruturação do sector que o Estado se propõe apoiar”.
Depois de terem tido finalmente acesso ao documento, “através das autarquias” e de uma forma “clandestina”, as companhias, sediadas em algumas das mais importantes cidades médias do país, afirmam que o diploma “corresponde a uma mudança significativa do espírito e da filosofia inerente às normas aprovadas em 2006” e denunciam as suas contradições em relação ao Programa de Governo.
No primeiro dos quatro pontos em que fundamentam a sua posição, as signatárias afirmam que a nova lei vem contribuir ainda mais para a desestruturação do sector da criação artística, ao pretender por “em pé de igualdade” grupos e realidades muito distintas, tanto em relação ao número de anos de actividade quanto ao nível de profissionalimo. Contestam, nomeadamente, a eliminação dos conceitos de “núcleo profissional permanente” e de “tempo integral ou equivalente”, definidos como critérios de diferenciação na lei de 2006 e agora revogados, bem como a não separação entre apoios à criação e apoios à programação, em clara oposição ao estabelecido no Programa de Governo. “Sem uma adequada clarificação do papel da criação artística numa sociedade”, afirmam, “será impossível estruturar qualquer política cultural coerente para o país e avaliar a forma como é concretizada a missão de serviço público nesta área”.
As companhias criticam ainda a revogação do “processo simplificado”, que não vai chegar a entrar em vigor em 2009, como estava previsto. No caso do teatro, este regime previa que estruturas com mais de 15 anos de actividade, apoiadas há mais de oito anos, com um “núcleo profissional permanente” e com acesso regular a instalações licenciadas pudessem ser convidadas, mediante a obtenção de um parecer favorável das comissões nomeadas pelo Governo que acompanharam o seu trabalho ao longo dos últimos quatro anos, a celebrar directamente um contrato-programa com a Direcção-Geral das Artes. A nova lei, “em nome de uma equívoca interpretação do conceito de equidade”, retoma a universalidade dos concursos e regressa à fórmula de júris nacionais que existia há dez anos. Na carta enviada ao Ministro, estas companhias afirmam não ter qualquer posição de princípio contra o carácter nacional dos júris, mas constatam: “serão muito poucas as pessoas que estão em condições de avaliar o trabalho desenvolvido nos últimos anos pela globalidade das estruturas do país”. Neste sentido, afirmam: “é fundamental que as pessoas que venham a ser nomeadas para esta função sejam efectivamente idóneas, isentas e conhecedoras da realidade da criação artística em todo o território nacional”. Sobre estas pessoas, acrescentam, “recai a responsabilidade de possibilitar a sobrevivência ou condenar ao desaparecimento estruturas de criação com percursos reconhecidos”. Prevendo um aumento exponencial da arbitrariedade a que vão ficar sujeitas, afirmam: “é absolutamente chocante que alguém possa avaliar o trabalho de uma estrutura sem que o conheça”.
As preocupações manifestadas por este conjunto de companhias são particularmente relevantes fora de Lisboa, onde as estruturas de criação se confrontam “com dificuldades específicas que o governo teima em ignorar”. Para além dos custos acrescidos com a contratação de pessoal, decorrentes das maiores dificuldades dos artistas contratados fora da capital para conciliar segundos e terceiros empregos, o regresso a júris nacionais desinformados e desconhecedores da realidade do país afigura-se como especialmente prejudicial e injusto para as companhias que, pelo facto de estarem sediadas noutras cidades, vêem sistematicamente dificultado o seu acesso aos órgãos de comunicação social nacionais e são ignoradas pela crítica especializada.
Finalmente, as companhias do Algarve, de Braga, de Coimbra, da Covilhã e de Évora acusam este novo regulamento de “não ser mais do que uma forma de disfarçar o crónico e cada vez mais grave sub-financiamento do sector”. Ao contrário do que se defende no Programa de Governo - “retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram” - o orçamento para a cultura tem vindo a diminuir sucessivamente ao longo do mandato, “reflexo da crescente perda de peso político de capacidade reivindicativa do respectivo Ministério”. As alterações agora aprovadas surgem, no seu entender, como “uma espécie de bodo aos pobres, que se limita a manter tudo na mesma, dando pouco a muitos e procurando distribuir o mal pelas aldeias”.
Na carta enviada ao Ministro da Cultura, estas companhias recusam-se a pactuar com o que consideram ser “uma visão redutora e instrumental do papel da criação artística” e reiteram a sua disponibilidade para “verdadeiramente trabalhar em parceria com o Estado na concretização de objectivos comuns e de interesse público”. Lamentam, por isso, que a nova legislação elimine os mecanismos aprovados em 2006 que possibilitavam ao Estado “considerar os casos concretos de cada estrutura e estabelecer contratos estáveis com aquelas que entendesse serem as mais bem posicionadas para esse fim, de acordo com critérios claros e definidos em função do interesse público”.
Sediadas em cidades incontornáveis para a definição de qualquer política de desecentralização, muitas das estruturas de criação sediadas fora de Lisboa têm dado “um inquestionável contributo para o desenvolvimento cultural do país”, oferecendo “uma voz própria” às suas localidades, “activando redes de circulação e intercâmbio, dinamizando espaços e justificando a construção ou recuperação de outros, formando públicos, auxiliando escolas e universidades no processo educativo, formando ou integrando no mercado de trabalho os novos profissionais, estabelecendo colaborações com outras instituições, nacionais e internacionais”.
“Não valorizar o trabalho destas estruturas, a sua implantação no terreno e o reconhecimento que souberam merecer com o trabalho desenvolvido parece-nos um contra-senso, até do ponto de vista da mera gestão dos recursos disponíveis”, adiantam estas companhias, que concluem: “Embora constrangidas pela asfixia financeira que o próprio Governo reconhece no seu Programa, elas dispõem de recursos humanos e técnicos e de uma implantação no terreno de que não faz sentido que o Estado abdique na definição e na concretização de qualquer estratégia de desenvolvimento”.
Coimbra, 29 de Agosto de 2008.
ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve
A Escola da Noite – Grupo de Teatro de Coimbra
Centro Dramático de Évora
Companhia de Teatro de Braga
Teatro das Beiras
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