ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve
A Escola da Noite – Grupo de Teatro de Coimbra
Centro Dramático de Évora
Companhia de Teatro de Braga
Teatro das Beiras
Em face do convite feito pela Direcção-Geral das Artes, as cinco companhias de teatro descentralizadas que assinam este texto vêm manifestar a sua posição quanto à proposta de alterações ao regulamento de “apoio directo às artes” apresentada pelo Ministério da Cultura.
Analisados o documento síntese publicado no sítio da DGArtes e a proposta de Portaria que visa regulamentar o Decreto-Lei aprovado a 14 de Agosto, concluímos que as preocupações, interrogações e discordâncias que apresentámos em carta dirigida ao Senhor Ministro da Cultura no final do mês passado vêem alargados e reforçados os seus fundamentos.
O Ministério da Cultura continua a não assumir nenhuma estratégia sobre o seu papel no desenvolvimento da actividade artística no país. As contradições internas que caracterizam o documento (com um claro desfasamento entre os objectivos enunciados e as normas e os procedimentos que institui), agravadas pelo facto de ele surgir isolado de quaisquer outras políticas complementares (Lei do Mecenato, Estatuto Profissional dos Artistas, articulação inter-sectorial nos domínios da formação e da internacionalização, por exemplo) configuram uma situação em que o Estado se demite cada vez mais das obrigações que lhe assistem nesta matéria. Independentemente do montante financeiro que vier a ser destinado a este tipo de apoios (informação absolutamente essencial para determinar a sua potencial eficácia), a forma como o investimento público é entendido na prática, tanto no Decreto-Lei como na proposta de Portaria (apesar das definições de serviço público que teoricamente o fundamentam), apenas reforça a perspectiva daqueles que defendem o seu carácter subsidiário, acessório e tendencialmente dispensável. Sendo certo que o debate político em Portugal sobre esta matéria permanece agarrado a conceitos e a dicotomias que noutros países foram ultrapassados há quase cinquenta anos, é no mínimo paradoxal que seja o próprio Estado a promover a ambiguidade: no mesmo documento em que se propõe regulamentar o financiamento público da criação artística, o Ministério da Cultura inclui inúmeros elementos que manifestamente contrariam o sentido e o alcance da intervenção do Estado nesta matéria.
Como tivemos oportunidade de escrever na carta enviada ao Ministro da Cultura, muitas destas incongruências estão enunciadas no Decreto-Lei já aprovado, estando portanto fora do alcance da discussão pública agora aberta pela DGArtes. Ainda assim, parece-nos desejável que, na Portaria que falta aprovar, sejam esclarecidos (e, na medida do possível, corrigidos) alguns dos aspectos que consideramos mais gravosos para o desenvolvimento sustentado da criação artística em Portugal. É esse o sentido do contributo que pretendemos dar com o presente documento, na perspectiva de colaboração e de parceria franca que, entendemos, deve caracterizar a relação entre o Ministério da Cultura e os agentes culturais na prossecução de objectivos comuns e de interesse público.
1. Quanto aos objectivos
A primeira perplexidade decorre da forma como se pretende “calibrar”, corrigindo assimetrias regionais, o “carácter nacional das candidaturas”, definindo à partida um tecto financeiro e um número máximo de candidaturas a apoiar em cada região. Na prática, e apesar de serem avaliados pelos mesmos jurados, os concorrentes apresentam-se a concursos distintos: uma companhia sediada na Região Norte não entra em concorrência com uma estrutura de Lisboa, uma vez que os “bolos” financeiros de onde vão sair os seus apoios são independentes. Para além de não estarem definidos os critérios em que a DGArtes se vai basear para definir os montantes e o número de projectos para cada região (ficando, por isso, potencialmente sujeitos a decisões arbitrárias), este cenário cria desde logo uma situação de desigualdade entre regiões: uma estrutura que tenha obtido uma pontuação mais elevada (atribuída pelo mesmo júri à luz dos mesmos critérios) pode vir a receber um apoio menor do que outra, pelo simples facto de estarem sediadas em regiões distintas e de a primeira ter um tecto financeiro inferior em relação à segunda. No mesmo sentido, não é claro se se pretende que “o montante de referência máximo de apoio financeiro por candidatura” seja igual para todo o país ou diferenciado de região para região. A primeira opção tem implicações orçamentais que, tendo em conta o espírito de restrição orçamental que marca todo o documento e as actuais diferenças de níveis de financiamento entre regiões, talvez não tenham sido devidamente ponderadas. A segunda opção parece-nos ilegal: proponentes a um mesmo concurso teriam as suas possibilidades de financiamento máximo diferenciadas à partida e administrativamente, antes sequer se serem avaliadas pelo júri. Neste contexto, o regulamento proposto não só não contribui para corrigir as assimetrias regionais como pode mesmo agravá-las por instituição legal.
Num outro plano, a definição dos objectivos específicos para cada área artística parece-nos excessivamente redutora. Não houve a preocupação de considerar as particularidades de cada área, o que resulta num redundante lista de generalidades que apenas aumenta as dificuldades dos jurados e potencia a arbitrariedade das suas decisões. No caso concreto do Teatro, é francamente decepcionante que o Estado não assuma como objectivos específicos, por exemplo, a valorização e divulgação da dramaturgia nacional e a sua internacionalização, tendo em conta o papel fundamental desta arte na promoção e na divulgação da língua portuguesa. É igualmente muito grave (embora coerente com o resto do articulado) que em momento nenhum se assuma o fortalecimento e a consolidação das estruturas de criação como um objectivo do financiamento público.
2. Quanto aos procedimentos
Para além das questões enunciadas no ponto anterior, os efeitos perversos da contradição entre um júri nacional e condicionalismos regionais agravam-se no “período de verificação”, em que a DGArtes define os montantes disponíveis para cada área artística dentro de cada região. O critério da “proporcionalidade relativamente ao total dos montantes solicitados por todas as candidaturas” é incompatível com as preocupações enunciadas com a “qualidade, exemplaridade e representatividade” e, sobretudo, com a preocupação com a excelência que o Estado não pode deixar de perseguir. Aceitando que os recursos são limitados e que é necessário estabelecer tectos orçamentais, exige-se contudo que esses tectos sejam estabelecidos de acordo com critérios que correspondam a uma intenção de intervenção estratégica e não que se refugiem numa “regra de três simples”. Exige-se, afinal, que a DGArtes seja algo mais do que uma secção de tesouraria do Ministério da Cultura.
3. Quanto aos critérios de avaliação
A preocupação com a quantificação dos critérios de avaliação do novo regulamento assenta na equívoca mas infelizmente habitual associação entre subjectividade e avaliação qualitativa. Ao subordinar os parâmetros a considerar pelos jurados à sua capacidade se serem reduzidos a números, a avaliação deixa de fora critérios objectivos importantes e equipara em termos reais (na medida em que têm um peso “matemático” igual) factores cuja importância, à luz dos objectivos do próprio regulamento, é muito distinta.
O principal exemplo desta situação é o critério definido como “capacidade de gerar receitas próprias e angariar financiamentos e outros apoios”. Em momento nenhum se define a tendência para a auto-sustentabilidade das estruturas de criação como um objectivo desta legislação. Ele seria, aliás, contraditório com a lógica de interesse público (bem) enunciada no Decreto-Lei: se se entende que as estruturas de criação prestam um serviço público, então deve ser claro que compete ao Estado assegurar a maior parte do seu financiamento, garantindo a sustentabilidade mínima dos agentes. Embora seja aceitável que se incentive a procura de fontes complementares de receitas, não faz sentido inverter a lógica, reservando um papel meramente subsidiário ao financiamento público – é enquadrável na lógica de serviço público a actividade de uma entidade que é financiada pelo Estado em apenas 10% (condição para se obter a pontuação máxima neste critério)? Tal como está formulado, e com a agravante de representar mais de 20% do total da avaliação, este factor introduz uma distorção absurda: quanto menos importante é o apoio do Estado para a entidade concorrente, maior será a verba atribuída! No caso de o Estado insistir em manter este critério, ele deverá ser pelo menos relativizado e enquadrado, como sub-parâmetro, na “consistência do projecto de gestão”, ao lado do equilíbrio orçamental, da razoabilidade das despesas, etc.
Por outro lado, não se entende a menorização da “pertinência do percurso artístico e profissional das equipas”, à qual é atribuída apenas metade do peso dos restantes critérios. A avaliação do trabalho anteriormente desenvolvido pelos concorrentes, sobretudo quando foram alvo de financiamento, acompanhamento e avaliação por parte do Ministério da Cultura, é precisamente um dos critérios mais objectivos ao dispor do júri para avaliar as candidaturas e, portanto, um dos mais importantes. Sugere-se, por isso, que este critério seja no mínimo equiparado aos restantes e que a “avaliação anterior das entidades candidatas” (actualmente remetida para a insignificância prática dos “critérios de majoração”) seja um dos sub-parâmetros a considerar neste domínio.
Só por lapso se pode ter considerado que a “definição de públicos-alvo e concepção do plano de comunicação e divulgação” poderia servir de parâmetro para avaliar a “qualidade artística” dos projectos. Trata-se naturalmente de tarefas de produção, que devem ser consideradas enquanto elementos do “projecto de gestão/administração” e, assim, contribuir para avaliar a sua consistência.
Finalmente, e em consonância com o que devia ser um objectivo estratégico do financiamento público do Estado, a dimensão e a solidez da estrutura (verificada pelo número e qualificação dos profissionais e de colaboradores a título permanente, entre outros indicadores) deveria igualmente ser um critério de avaliação, autónomo ou, no mínimo, integrado na “consistência do projecto de gestão”.
Em relação aos factores de majoração, é necessário clarificar se se pretende que eles sejam cumulativos entre si, ou seja, que permitam um acréscimo de 2 pontos por cada factor cumprido (até um máximo de 12, portanto). Caso contrário, é iguamente necessário esclarecer a partir de quantos factores cumpridos se tem direito aos 2 pontos de acréscimo ou se é necessário cumpri-los todos para obter essa majoração. Em qualquer dos casos, no entanto, e tendo em conta a importância substantiva de alguns dos factores enunciados – para além da já referida avaliação da actividade anterior, o apoio continuado do MC, a circulação nacional e internacional e o acolhimento de entidades emergentes – o benefício real para as estruturas que cumpram estes requisitos é irrisório e não é susceptível de produzir qualquer efeito prático.
Há, no entanto, um factor essencial (que corresponde inclusivamente a um objectivo definido como central pelo próprio Ministério da Cultura) cujo valor, na actual formulação, é absolutamente nulo: a “localização da sede da entidade fora das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto”. Como vimos atrás, os concorrentes de regiões diferentes não concorrem entre si. Isto significa que, à excepção da Região Norte, em todas as outras regiões a plenitude dos concorrentes satisfaz (no Centro, no Alentejo e no Algarve) ou não satisfaz (em Lisboa e Vale do Tejo) este factor, o que elimina o seu potencial de discriminação positiva e de correcção de assimetrias regionais que se pretende que tenha. Inútil em quase todo o território nacional, o factor da “localização” só funciona na Região Norte (valorizando uma proposta de Bragança em relação a uma proposta do Porto) acaba por servir apenas uma parte dos concorrentes, o que mais uma vez agrava (em vez de atenuar) as desigualdades entre regiões e entre candidatos.
4. Quanto à distribuição do apoio financeiro
Evidenciámos já alguns importantes factores que distorcem a ilusória “neutralidade” e “objectividade” da fórmula matemática proposta para o cálculo do montante a atribuir: independentemente da qualidade do projecto (teoricamente aferida pelo júri em função dos critérios de avaliação atrás discutidos), o segundo termo da multiplicação (montante solicitado) é condicionado à partida pelo “montante de referência máximo por candidatura”, administrativamente definido pela DGArtes.
Debruçamo-nos agora sobre o terceiro termo da fórmula – o “factor de distribuição”, calculado no cruzamento entre o orçamento global da estrutura e o volume de actividade. O regulamento propõe uma grelha de pontuação para diferentes tipos de actividade cuja coerência (interna e em relação ao resto do documento) não descortinamos. Deixamos alguns exemplos e interrogações:
- se a “circulação nacional” é um factor a valorizar, e sendo certo que um espectáculo em itinerância envolve mais recursos técnicos e humanos e implica maiores tempos de montagem (incluindo várias horas de deslocações), não seria justo um factor de ponderação superior ao aplicável a espectáculos apresentados no próprio espaço das estruturas (1,5 ou 2, por exemplo)?
- já que a internacionalização é um desígnio do Ministério da Cultura, previsto no próprio Programa do Governo, mas que o regulamento agora proposto a ignora por completo, deixando os criadores sozinhos na procura dos meios indispensáveis à sua concretização, sem disporem sequer de legislação ou apoios complementares a que possam recorrer, não seria, no mínimo, de reforçar a ponderação de espectáculos apresentados fora do país (2 ou 2,5, por exemplo)?
- o que se entende pelos conceitos de “acção de formação” e de “residência artística”, quando, apesar de serem factores teoricamente valorizados, são depois objecto de ponderações mínimas – 0,5 por cada conjunto de 30 horas de formação e 0,75 por cada mês de residência artística?
5. Quanto às comissões de apreciação
Obervámos na carta enviada ao Ministro da Cultura as possíveis consequências do regresso ao modelo dos júris nacionais, num contexto em que nos parece existirem dificuldades para encontrar pessoas que reúnam, neste momento, as características previstas no Decreto-Lei. A análise mais pormenorizada da portaria acentua, como vimos, algumas das incongruências deste modelo, ao clarificar que se trata de um mesmo júri mas que trabalha com pressupostos diferentes de região para região.
Por outro lado, não encontramos justificação para a distinção que é feita, ao nível do modelo de apreciação das candidaturas, entre os apoios quadrienais, bienais e anuais, por um lado, e os apoios pontuais, por outro. Enquanto que os primeiros são avaliados por um júri de especialistas externos ao Ministério, os segundos são escolhidos pelos técnicos da Direcção Geral das Artes. A haver razões para uma diferença de procedimentos, parece-nos que deveria ser exactamente ao contrário, pelo menos no que diz respeito aos apoios quadrienais. É que a estes apoios apenas podem concorrer as estruturas com um mínimo de seis anos de actividade e que tenham beneficiado de apoio financeiro do Ministério durante um período mínimo de três anos nos últimos seis. É sobre estas estruturas, portanto, que a DGArtes possui a melhor e mais completa informação (incluindo decisões de júris anteriores e relatórios das comissões de acompanhamento nomeadas pelo Ministério da Cultura), pelo que estaria em muito melhores condições de avaliar os projectos apresentados e respectiva capacidade de execução por parte dos concorrentes.