28/06/16

O sentido das coisas

A decisão de trabalhar um texto e criar um espectáculo não é, em mim, coisa rápida. Sendo um processo de criação, integra obviamente um discurso artístico mas é, sempre, resultado de uma escolha. Uma opção, que deriva do meu olhar sobre o mundo e as pessoas. Sobre o Tempo. E claro sobre os actores. São eles os artífices do milagre da representação. Eles são Palavra e Corpo. E a verbalização dessas escritas fundam a Imagética do espectáculo. A decisão sobre esta escolha foi rápida, em razão do convite e dos prazos.

© Njord Photography
Nos últimos anos, o meu trabalho enquanto encenador tem-se focado em três conceitos estruturantes: Liberdade. Solidão. Cidadania. Na Europa e na qualidade da nossa democracia. Em NÓS! Nesta nossa - por herança de bastardos – Europa. Essa mítica e bela Europa que se banhava no Peleponeso amamentada no berço pela Hélade, para não deixarmos que a Memória nos atraiçoe. A velha vontade, há tanto tempo acalentada, de destruição da nossa querida Europa recrudesce e os novos turcos, são afinal os nossos irmãos de ontem. Eles estão no meio de nós e esperam o momento…

Aceitado o convite, algumas interrogações se me depararam: que texto escolher? Como compaginar uma escolha que possa responder e sustentar o trabalho artístico de um grupo de jovens alunos candidatos às profissões desta artesania? Com preocupações de equidade na distribuição, valorizando e, quiçá, potenciando a qualidade intrínseca a cada um e uma. Na convicção que teatro já não faz revoluções mas pode tornar melhores os que o praticam. Conhecer a matéria prima: os artífices. Saber um pouco (ou muito) deles. Das suas vontades e Memórias, do seu estado! Foi um primeiro passo. O que pensam da guerra? Que memórias transportam? A guerra está longe ou perto? Foi um segundo. Olhá-los. Vê-los. Ouvi-los. Mais um. Afinal, são apenas três rapazes e um número infindável de raparigas. E feita a pergunta “se queriam ser mesmo actores e actrizes”. Ninguém disse que Não! O que não é o mesmo de todos dizerem, SIM!

© Njord Photography
Nestas circunstâncias a escolha teria de passar por um texto que permitisse uma distribuição atenta a cada um/a, equilibrada nos trabalhos e diversa na natureza e sentido de cada cena, rica nos ritmos e na música que as Palavras possam proporcionar. 

E assim caímos em Horváth (Ödön von Horváth Edmund Josef) esse mesmo escritor, filho do Império Austro-Húngaro, nascido numa cidade da antiga Hungria e hoje da Croácia. Lá, berço da 1ª Guerra e de muitas outras. Horváth, filho de diplomata húngaro, adopta a Alemanha, tornando-se um dos escritores mais promissores naquela língua e um dos primeiros escritores antifascistas daquele país. Sendo obrigado a fugir para a Áustria e depois para Paris, em 1938, onde viria a morrer atingido por uma árvore durante uma tempestade. Dias antes teria dito a um amigo: “não tenho assim tanto medo dos nazis… existem coisas piores de que podemos ter medo, coisas de que temos medo sem sabermos bem porquê. Por exemplo tenho medo de ruas. As ruas podem ser hostis para uma pessoa, pode-nos destruir. As ruas assustam-me”.

E, de repente, tudo faz sentido. Com DON JUAN VOLTA DA GUERRA de Horváth, - depois de Kroetz (Concerto À La Carte); Ésquilo (Oresteia, a trilogia); Jeffrey Hatcher (Um Picasso); Thomas Bernhard (No Alvo) e Vergílio Alberto Vieira (Oratória do Vento) – posso continuar o meu caminho na Europa. Nesta Europa que perdeu o rumo na volta das guerras. Os comandantes tresmalharam-se, embebedaram-se e ufanos de poder, declararam guerra aos povos. A nossa Europa é hoje uma massa informe, gelatinosa, que se apega ao que passa. Este espectáculo será um exercício final de um grupo de jovens estudantes de teatro. Mas terá de ser muito mais do que isso, para ser a sério. Será o testemunho de um grupo de jovens artistas sobre o seu Tempo. Um exercício de Memória. Um exercício de Prazer.
Rui Madeira


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